Desculpe o transtorno. Estou em reforma.

Brasil de Longe

Myrthes Suplicy Vieira (*)

Não dava mais para adiar uma reforma radical do meu edifício psíquico. O ar de decadência já havia tomado conta de tudo e deixado claro que não adiantaria reestilizar o ambiente. Era preciso derrubar todas as paredes e recomeçar do zero.

Conserto 2Bem que eu tentei continuar convivendo com as velhas estruturas que ainda estavam de pé dentro de mim, mas a verdade inescapável era que minha vida anímica tinha perdido muito de sua funcionalidade. Eu já tinha improvisado alguns remendos de caráter, redecorado ítens de personalidade, feito um puxadinho emocional para acomodar meu desconforto de lidar com tarefas rotineiras. Tinha construído mais um andar para servir de depósito para todos aqueles projetos que eu ia empilhando para quando chegasse o dia certo de realizar. Não adiantou.

Eram tantas divisórias que eu já não podia mais circular livremente. Havia também espaços emocionais que estavam vazios ou subutilizados…

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O que nos separa e o que nos une

Brasil de Longe

Cabeçalho 3Myrthes Suplicy Vieira (*)

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Estarrecida com os recentes atentados ocorridos em Paris e, consequentemente, incapacitada de articular em palavras toda minha tristeza e solidariedade às vítimas, resolvi repassar a vocês as sábias palavras proferidas por minha cachorra mais velha:

Cachorro 2“O mal também está entre nós. O mal é irracional e, nesse sentido, animal. Como toda pulsão instintiva, ele age de forma devastadoramente intempestiva e inesperada. Não há como prever nem deter sua força destruidora. Só resta aos atingidos recolher-se por um tempo, lamber as feridas e ponderar sobre as próprias fragilidades. Depois, aos poucos, retomar a vida cotidiana com uma compreensão mais abrangente da responsabilidade de cada um no sentido de enfrentar de peito aberto os perigos que nos rondam.

Cachorro 7Há, no entanto, algumas diferenças importantes entre a forma humana e animal de agir maldosamente que eu gostaria de explorar por alguns instantes. Em primeiro lugar, nós animais somos…

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Conversa de cachorro

Brasil de Longe

Myrthes Suplicy Vieira (*)

Minha cachorra mais velha e mais sábia me chamou para conversar. Tenho notado, disse ela como introdução, que você anda um tanto ressabiada, irritada mesmo com os últimos acontecimentos políticos, não é verdade?

Nuvens 2Amuada, respondi que estava me sentindo cansada com tanto vai e vem nos humores da população e dos governantes. Acho que a desesperança tomou conta de mim, admiti constrangida.

A cachorra aprumou-se e continuou: Vocês não têm um ditado que diz que, para quem não sabe aonde quer ir, nenhum vento é favorável? Pois então, sinto que você está perdida em divagações sobre o que vai acontecer do lado de fora e não se dá conta de que o mais importante é encontrar um caminho interno. Você não acha que já está mais do que na hora de parar de ficar apontando a responsabilidade de outras pessoas pela escolha do atual curso de…

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Do Trabalho que Dá Ter um Cachorro

Imagem

Muitas pessoas já me pararam na rua admiradas com minhas cachorras – seja por seu porte, sua estrutura corporal, pela beleza e brilho de seus longos pelos, por seu ar de vivacidade ou, ainda, por sua doce mansidão – para me fazer sempre uma mesma pergunta: “Dá muito trabalho?”

Nunca soube responder com precisão a essa pergunta. Gastava sempre alguns minutos me perguntando se a rotina diária de cuidados com elas podia ou não ser enquadrada na categoria “trabalho”. Explico melhor: para mim, trabalho e prazer não são categorias mutuamente excludentes. Na cabeça de muitas pessoas, trabalho vem normalmente associado a obrigação, sacrifício, dedicação, esforço, atos repetitivos, busca de resultados, chatice. Já prazer é comumente associado a ficar deitado de barriga para cima, preferencialmente ao ar livre, sem fazer nada e, no mais das vezes, desfrutando de algum estímulo revigorante, como uma brisa, uma bebida gelada, uma comidinha bem temperada ou carícias corporais.

Para meu cérebro, no entanto, a coisa não é tão simples assim. Nem sempre dá para catalogar os cuidados necessários para a manutenção de uma vida saudável, seja ela humana ou animal, em um único desses extremos. Quem faz o que gosta, meu cérebro não se cansa de argumentar, não considera isso um trabalho; apenas e tão somente se delicia fazendo o que precisa ser feito. Como todas essas considerações me ocorriam quando ouvia a pergunta, eu devolvia impulsivamente: “Depende do que você considera trabalho! “

A piada é velha, mas, ainda assim, acho que vale a pena ilustrar com ela o que eu tentava comunicar: “Você sabe que está ficando velho quando o trabalho dá prazer e quando o prazer dá trabalho”. Como já estou entrada em anos e tenho tido poucas oportunidades de me deleitar com outros prazeres, resolvi dedicar o tempo que me sobra para condensar numa espécie de cartilha minhas percepções a respeito do trabalho que dá ter um cachorro. Os pontos abaixo são, portanto, minha contribuição pessoal para que os entusiastas da posse responsável possam tomar uma decisão informada:

  1. Cachorros não sabem limpar os pés no capacho da entrada. Portanto, você corre sempre o risco de ver o piso que você acabou de limpar ser conspurcado por uma trilha de pegadas de patinhas sujas de terra.
  2. Cachorros não sabem sugar nem aspirar a própria baba. Dessa forma, o lugar determinado por você para eles tomarem água vai estar sempre circundado por uma pocinha peculiar e, muitas vezes, haverá uma trilha de respingos indicando o trajeto que eles fazem indo e voltando do pote.
  3. Cachorros nunca se tornarão independentes de você para se alimentar, tomar água, tomar banho nem fazer suas necessidades fisiológicas de uma maneira ecologicamente sustentável e higienicamente responsável. Cabe a você tomar todas as providências necessárias nesses sentidos.
  4. Cachorros não falam e, portanto, você vai ter de se esforçar muito para entender o que eles estão tentando comunicar quando o olham com um ar de perplexidade, especialmente se esse olhar vem acompanhado de desobediência. Também não adianta nada perguntar o que está acontecendo quando eles ficam deitados por muito tempo e se recusam a comer.
  5. Cachorros carregam para dentro de sua casa – nas patas e nos pelos – uma série infindável de bactérias, germes, vírus e alergenos de toda espécie, galhinhos, torrões de terra, pulgas, carrapatos e outros desafios importantes a seu sistema imunológico. Tudo que você tem a fazer é se perguntar se ele está sendo fragilizado ou reforçado.
  6. Cachorros não fazem ideia de suas dimensões corporais nem de seu peso e também não sabem calcular distâncias muito bem. Assim, seus móveis, pratarias, cristais e bibelôs estarão permanentemente em risco quando de seus deslocamentos dentro de casa, principalmente quando eles estão felizes e abanando seus rabos com vigor.
  7. Cachorros costumam se empolgar, tanto no sentido afetuoso quanto agressivo, quando encontram pelas ruas algum companheiro de quatro patas e, portanto, você terá de ficar eternamente alerta para evitar tropeções e arrastões. Caso o encontro seja com humanos, você precisará cuidar para que não assustem nem derrubem crianças pequenas e idosos debilitados. Outro cuidado sempre necessário é treiná-los para que não façam movimentos bruscos nem saiam correndo se se assustarem com o barulho do trânsito.
  8. Cachorros não obedecem às nossas convenções sociais. Podem cheirar suas partes íntimas sem pudor, pular nas visitas, agarrar-se às suas pernas e pés, fazendo movimentos copulatórios explícitos. Podem até mesmo fazer xixi como forma de demonstrar alegria por vê-lo.
  9. Cachorros podem produzir ruídos altos e irritantes por horas a fio quando se sentem sozinhos, mas certamente o que mais vai incomodá-lo é quando eles ficam em silêncio por muito tempo. Não dê chance ao azar: levante-se imediatamente e vá ver o que eles estão aprontando. Nove vezes em dez você terá surpresas desagradáveis.
  10. Cachorros não sabem determinar o valor financeiro nem afetivo dos objetos que encontram em seu caminho. Seus óculos, seu celular, o controle dos seus aparelhos eletrônicos, documentos, boletos de pagamento, aqueles seus sapatos caríssimos, aquela roupa que você adora, seus acessórios e joias despertarão sempre uma grande curiosidade neles. Como não têm mãos para segurá-los e examiná-los mais de perto, eles os colocarão em suas bocas para experimentar seu gosto e sua textura. Caso gostem….
  11. Cachorros podem despertar temor, raiva ou ternura em terceiros. Ao circular com eles em elevadores ou nas ruas, esteja preparado para enfrentar reações imprevisíveis das pessoas com quem você cruza. Elas podem ir desde afagos e elogios até gritos, impropérios e escoriações generalizadas – em você, neles e nos tais terceiros.
  12. Cachorros não podem ser deixados sozinhos por muito tempo – nem ao longo de um único dia nem durante suas férias, viagens a trabalho, compromissos de última hora, em função de doença ou simples cansaço. Tenha sempre à mão o telefone de um hotelzinho, spa ou clube de campo para pets. Nem pense em pedir a seus familiares e amigos para ficar com eles, já que quase sempre receberá apenas um sorriso amarelo de volta. Qualquer que seja a solução encontrada, você terá de arcar com todos os custos de hospedagem, alimentação e transporte.
  13. Cachorros são emocionalmente “grudentos”. Transformam-se em suas sombras e caminham literalmente em seus calcanhares onde quer que você vá. Estão sempre necessitados de atenção e não se constrangem em lançar aqueles olhares pidões, querendo que você interrompa tudo o que está fazendo, por mais importante que seja, só para jogar bolinha, fazer um afago ou simplesmente olhar para eles.
  14. Cachorros não têm noção de tempo. Para eles, não existe futuro nem passado. Por isso, não adianta caprichar na bronca por algum malfeito que eles tenham perpetrado alguns minutos atrás e que você já cansou de tentar corrigir. Também não adianta pedir que eles esperem você terminar o que está fazendo para leva-los para passear. Em pouco tempo, você vai perceber que esta desvantagem tem um lado bom: eles não guardam ressentimentos e nunca vão jogar na sua cara seus descontroles emocionais do passado. Depois de um conflito qualquer, basta chama-los que eles virão correndo, balançando alegremente o rabo.

Não se deixe abater, caro leitor, com todas essas limitações. Cachorros são seres paradoxais. Apesar de serem a causa direta ou remota de tantos transtornos, desconfortos, irritações ou constrangimentos em seu cotidiano, certamente seu pior “defeito” é estabelecer um padrão de relacionamento que não encontra paralelo na espécie humana. Eles fazem com que você se acostume a esperar das pessoas o mesmo comportamento ético, a mesma lealdade, a mesma sensibilidade para decifrar suas emoções, o mesmo olhar de admiração. E, ao se dar conta de que isso será praticamente impossível, você desaprende de viver sem um cão do seu lado.

apresentação

É com prazer que apresento minhas credenciais para tratar de um tema tão complexo e delicado como o das relações entre humanos e animais. Para não criar falsas expectativas desde o início, começo apontando as coisas que não sou: não sou veterinária, não tenho formação como adestradora profissional e não sou ativista da causa da defesa animal.

De que forma posso, então, colaborar para o entendimento do mundo dos cães? Bem, minhas credenciais são as seguintes: 1)sou psicóloga – e, portanto, estudiosa do comportamento humano e animal; 2) conto com uma longa experiência de convivência com cães de várias raças e tamanhos, e 3) sou uma pessoa extremamente curiosa. Com isso quero dizer que devoro com avidez todo e qualquer texto ou vídeo que faça referência à relação entre humanos e seus cães.

Desde menina infernizei a vida de meus pais para que me permitissem criar um cachorro, ainda que tenha falhado em todas as tentativas. Como éramos 5 filhos e morávamos em apartamento, não havia argumento capaz de persuadir não só minha família mas também vizinhos e síndicos. Muito mais tarde, quando eu já era adulta e meus pais já haviam se separado, conquistei meu primeiro cachorro, um Fox paulistinha hiperativo que enlouqueceu minha mãe destruindo tudo o que encontrava pela frente, de sapatos a fios elétricos, até que ela resolveu doá-lo para outra família. A ele se seguiu, anos depois, um mestiço de vira-lata e pastor alemão igualmente endiabrado mas que trouxe menos dissabores, já que morávamos em uma casa e ele podia circular pelas ruas de vez em quando.

Após a morte de minha mãe, entrei em forte depressão e pouco tempo depois desenvolvi um quadro de diabetes. A conselho do meu endocrinologista, passei a fazer longas caminhadas, uma atividade que me desagradava realizar sozinha e sem destino. Decidi então ter mais uma vez a companhia de um cachorro, na medida em que seria obrigada a levá-lo passear todos os dias. Minha cachorra Rebecca, uma Sheepdog linda e altiva, ajudou-me a superar não só a depressão e o diabetes mas também transformou por completo minha personalidade. Ela era a rainha da simpatia de minha rua, paparicada por moradores e funcionários de vários condomínios, e atraía a atenção de praticamente todos os passantes, fossem eles pedestres ou motoristas. Graças a isso, passei a ser vista como uma pessoa igualmente simpática.

Como ela era muito impulsiva e muitas vezes me arrastava pelas ruas, resolvi contratar um adestrador profissional. As dicas que ele me passou ao longo dos meses de nossa convivência foram decisivas para mudar meu entendimento a respeito do mundo dos cães e para desenvolver novas formas de comunicação com eles. Fiz várias experimentações com sons, gestos, olhares e posturas corporais, anotando cuidadosamente as reações obtidas. Um universo fascinante se abriu diante dos meus olhos. A troca de informações com os donos de outros animais complementou o prazer dessas descobertas. Para meu pesar, Rebecca se foi cinco anos mais tarde, vítima de uma leucemia, me deixando com uma sensação de completa inutilidade e despreparo para continuar vivendo sem a companhia iluminadora de um cão.

Tenho hoje duas cachorras: uma Bernese Mountain Dog de 7 anos, a Molly, e uma Golden Retriever de 5 anos, a Aisha. A convivência com as duas é extremamente pacífica, o que me abre um espaço de autoconfiança para aprofundar meus conhecimentos a respeito da relação saudável e prazerosa entre pessoas e seus bichos.

Quero, com este blog, trocar ainda mais figurinhas com todos os que me lerem, sejam eles donos ou não de animais. Convido a todos a me contarem suas experiências pessoais e a me ajudarem a descortinar novos horizontes dentro do universo humano e canino.